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Marajó foi ‘Veneza’ do Brasil pré-histórico
17/09/2017 06:23 em Notícias

O ambiente singular da ilha de Marajó, na foz do rio Amazonas, com seus campos alagados, poucas árvores e solo argiloso, acabou levando ao surgimento de uma espécie de Veneza pré-cabralina: uma sociedade complexa que construiu suas próprias plataformas elevadas, morros artificiais, para se proteger das cheias periódicas, um sofisticado sistema para aproveitar os recursos pesqueiros e uma arte incrível. Conto um pouco dessa história aqui — e também num dos capítulos do meu novo livro, “1499: O Brasil Antes de Cabral”. Confira o vídeo do canal do blog abaixo.

E, como bônus pra quem não curte muito vídeo, eis um trechinho do capítulo do meu livro sobre Marajó que explica alguns pontos-chave dessa história.

“Mover terra para gerenciar água”

A expressão acima, cunhada pela antropóloga Denise Pahl Schaan, da UFPA (Universidade Federal do Pará), é um jeito particularmente memorável de explicar a lógica que guiou a ascensão da sociedade complexa dos campos de Marajó. A marca mais visível da passagem desse povo pela ilha são os chamados tesos – também designados com o termo inglês mound, algo como “morro artificial”. (Em sítios arqueológicos europeus, mound é o nome que se dá a elevações do terreno feitas por seres humanos, em períodos tão diferentes quanto a Idade do Bronze ou a Alta Idade Média, em geral com função funerária, dedicada a abrigar os cadáveres de membros da elite, com suas armas e joias; o mesmo termo acabou sendo incorporado até por romances de fantasia, como O Senhor dos Anéis – os reis dos cavaleiros de Rohan, um dos povos da saga, eram enterrados em mounds.)

Basta dar uma rápida olhada num par de fotografias tiradas pela própria Denise em 2005 para entender a provável importância dos tesos ou mounds no passado. Uma delas retrata o chamado Teso dos Bichos, um dos exemplos mais conhecidos desse tipo de sítio arqueológico, em janeiro, no comecinho da estação úmida. Nessa imagem, o solo ainda está seco, e o teso parece só um tipo esquisito de morro baixo, relativamente estreito e comprido. A outra foto, tirada em maio, quando já choveu a maior parte do que era para chover naquele ano, mostra o que, na prática, é uma ilha – o Teso dos Bichos – cercada por um enorme lago raso, que parece se perder no horizonte.

A diferença brutal entre um teso na estação seca e na chuvosa (Crédito: Reprodução)

Esse cenário vale para toda a porção oriental de Marajó: os tesos costumam ficar acima da linha d’água durante a cheia e, o que é mais importante ainda, há fortes indícios de que eles não são simples morrinhos naturais. Foram construídos (ou pelo menos significativamente aumentados) pelos antigos marajoaras como plataformas antienchente. Os habitantes da região iam arrancando lama do leito das lagoas temporárias após a fase de inundação e amontoando o material em posições estratégicas, em geral seguindo o curso dos rios. Deu para entender agora o tal “mover terra para gerenciar água”, certo?

Acontece que o gerenciamento hídrico marajoara não estava ligado só à construção dos tesos, mas também a métodos para garantir que o suprimento de peixes estivesse disponível durante todo o ano, eliminando a necessidade de sair correndo para aproveitar a abundância de pescado em alguns meses de “alta temporada” no fim das cheias e no começo da seca. O trabalho da antropóloga da UFPA e de seus colegas no Igarapé dos Camutins, um afluente do rio Inajás, indica que os habitantes da região eram, em certo sentido, piscicultores – construíam lagos artificiais que serviam como “ralo” conforme as águas da cheia iam recuando de volta ao rio. Com isso, uma quantidade razoável de peixes ficava retida nessas represas durante a seca, à mercê dos moradores e a uma distância cômoda dos assentamentos. As escavações para a construção desses açudes alimentavam, por sua vez, o aumento de tamanho dos tesos – e, com mais gente bem alimentada pelas constantes peixadas, haveria mais braços para ambas as tarefas.

Análises conduzidas no Teso dos Bichos pela arqueóloga americana Anna Roosevelt, aliás, mostraram uma predominância clara de restos de fauna aquática no cardápio dos moradores: quase não havia ossos de aves e mamíferos, mas sobravam os de peixes de porte relativamente pequeno, como traíras (Hoplias malabaricus), piranhas (Serrasalmus sp.) e bagres conhecidos como tamoatás (Hoplosternum littorale), além de pequenas tartarugas, as muçuãs ou jurarás (Kinosternon scorpioides) – as quais, aliás, ainda são usadas na culinária amazônica. Peixes grandalhões, como o famoso e saboroso pirarucu (Arapaima gigas), também estavam presentes, mas em quantidade bem menor. Os dados se encaixam com facilidade na hipótese de que ocorriam capturas em massa de peixes de tamanho modesto nas águas rasas dos açudes.

Ao que tudo indica, esse sistema funcionou um bocado bem na região de Camutins: ao longo do rio, numa extensão de uns 10 km, os arqueólogos já identificaram cerca de 30 tesos, alguns dos quais medindo quase 10 metros de altura, com diferentes plataformas em sua estrutura. Escavações realizadas nos mounds desse complexo sugerem, além disso, que havia diferenças de função e hierarquia entre eles. Uma pista disso é bastante óbvia – o tamanho de cada teso, que provavelmente tinha relação direta com sua importância (quanto maior e mais imponente, maior a relevância de determinado teso, claro).

 

Outra tem a ver com a localização das estruturas: as mais grandiosas normalmente são as que estão diretamente ligadas a grandes lagoas ou “viveiros de peixes”, o que pode significar que os ocupantes de determinado teso de dimensões avantajadas eram os sujeitos que controlavam aquele crucial suprimento de proteína animal, de forma que os demais moradores da região tinham de pedir permissão a eles caso quisessem fritar alguns peixinhos. Um detalhe que parece corroborar essa ideia de controle estratégico é o fato de que, na área estudada por Denise Schaan, há um aglomerado de tesos modestos cercados por alguns de grande porte, sugerindo até uma função defensiva para a presença dos últimos. Calcula-se que todo o complexo de Camutins abrigasse uma população de até 3.000 pessoas – não muito diferente da que existiria numa cidade europeia medieval de médio a pequeno porte.

 

Por jornalista Reinaldo José Lopes.

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