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Relatos de calouras da Ufra sobre abusos são chocantes
13/08/2018 14:02 em Notícias

Para além dos questionamentos da capacidade da comissão formada para apuração dos acontecimentos relacionados aos abusos cometidos contra 12 calouras no trote da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) de junho de 2017, conforme matéria publicada no último domingo, os relatos das estudantes geram indignação. 

Os fatos relatados apontam um perverso padrão de procedimento nos abusos, o que sugere também que os abusadores criaram técnicas eficientes para tais práticas – possivelmente já apuradas em anos de experiências com episódios similares dentro da universidade. 

O primeiro passo da armadilha parece se criar, justamente, na oportunidade que se oferece em um passeio onde só os alunos mais antigos têm a autoridade de orientação – ou seja, um circuito onde as calouras não terão mais autonomia para escolher a hora de deixá-lo. "Nessa trilha, os alunos passavam por toda a extensão da faculdade. E nós, calouros, não sabíamos direito como seria aquele passeio”, narra Vitória.

Em determinado ponto do passeio, já na chegada ao fim da trilha, como narram as estudantes da Ufra, a justificativa do rito de iniciação na vida acadêmica abre o caminho para os abusos. “Até então eu achava que íamos terminar de fazer a trilha como um trote normal. Éramos vários alunos, de todos os cursos. E não era algo imposto. Tudo era como um rito de passagem. Até aí tudo certo. Era tudo descrito como uma espécie de brincadeira", conta Nice. 

"Nós estávamos em fila, e íamos passando pelos alunos veteranos. E então esses veteranos iam passar lama na gente. Só que a brincadeira, como falaram para a gente, era uma espécie de rito: disseram que essa lama teria que ser passada com nosso consentimento: nos braços, no rosto. E infelizmente não foi o que aconteceu. O que aconteceu foi outra coisa", indigna-se ainda Vitória, que embarga a voz ao relatar o episódio, que já completou mais de um ano.

"Eu uso lente de contato de grau. E nesse dia, eu estava com um óculos bem grande, para proteger os olhos. Quando eu passei por essas pessoas, eles colocaram terra nos meus olhos, fazendo com que eu não enxergasse mais nada. Depois colocaram terra na minha boca... [pausa na narrativa] ...e aí eu não conseguia mais me comunicar. Era uma terra fétida. Na minha boca. Eu não conseguia mais falar", emociona-se Vitória.

Para Nice, os mesmos cuidados dispensados: "Jogaram lama no meu rosto, baixaram o boné que eu estava usando. Passaram as mãos nas minhas partes, nos meus seios e nas minhas nádegas. E não era aquele passar de mão sem querer. Você sentia que era maldade”, conta a estudante. “Infelizmente, como estávamos cobertas de lama, e eu ainda de boné abaixado, não pude ver quem fez isso. Só sei que não foi apenas uma pessoa. Eram vários. Dava para perceber que muitos se aproveitaram desse momento para tirar proveito das calouras".

A estudante Vitória passou por algo pior. "Depois que começaram a passar lama em mim, se aproveitando do fato de que eu não estava enxergando, eles levantaram minha blusa e começaram a passar lama nos meus seios. Seguraram meus seios com muita força”, narra a aluna. “Foi um episódio brutal, que eu nunca vou esquecer. Eu não podia fazer nada: estava com lama na boca, não podia gritar e não podia enxergar nada”. Após a trilha, Vitória denunciou o que aconteceu a outras amigas. “E, para minha surpresa, foi o que aconteceu a outras meninas também".

Após o incidente, Vitória ficou um bom tempo pensando: avaliou se desistiria do curso sonhado - e conquistado em um disputado processo seletivo. “Eu não sabia nem como ia falar isso para os meus pais”, conta a estudante. “Mas eu decidi falar. Porque eu não queria que isso acontecesse com outras pessoas. Principalmente as meninas que são mais novas que eu. E eu decidi falar porque jamais pensei que isso poderia acontecer. Eu não queria que isso acontecesse comigo. E eu não desejo mesmo que isso aconteça com outras pessoas".

Com autoridade, a estudante Nice vai contra os argumentos defendidos semana passada pela reitoria da Ufra, ao defender que a instituição vem cumprindo seu papel para dar garantias às estudantes nos seus campi. Em entrevista ao O Liberal, a administração da universidade negou que as cercanias da instituição sejam um campo ainda fértil para práticas misóginas, cultura do estupro e outros abusos - e defendeu que medidas têm sido tomadas para mudar hábitos. Práticas que, há tempos, são apontadas pelas estudantes como rotineiras entre alunos e até mesmo professores da universidade. “Realmente, não é o que se passa pela nossa cabeça: que isso tudo, e um episódio de abuso como esse, possa ocorrer dentro de uma universidade federal", diz ela.

Nice ressalta que, para as estudantes – ainda que já sejam a maioria entre as matrículas da universidade -, ultimamente tem sido muito difícil transitar pelas vizinhanças da Ufra ou mesmo dentro da universidade. “A onda de insegurança é imensa. Temos medo das pessoas que passam por nós. E é um medo de que, se acontecer alguma coisa conosco, a universidade não tomará nenhuma medida por nós, assim como ocorreu na trilha, onde não tivemos apoio nenhum... é muito difícil lidar com essa situação".

Para a estudante da Ufra, todos esses episódios seguidos deixam claro que algo está muito errado na instituição. “O machismo está impregnado na nossa universidade. Infelizmente, eu acredito que isso venha de casa. Mas a instituição não toma medidas concretas para lidar com isso. E nós, meninas, as comunidades GLBT, as pessoas negras... todas sofrem muito dentro da universidade com tudo isso. São pessoas com uma mente muito atrasada. E isso está dentro de casa, nas ruas e também na universidade onde nós entramos".

"A brincadeira toda da trilha, até onde estávamos sabendo, era algo inocente. Éramos calouras. E essas pessoas se aproveitaram dessa situação e tocaram nessas garotas e inclusive em mim... [silêncio]. Eu sei que não vou esquecer disso, de jeito nenhum", assegura Vitória. "É por isso que atos como esse não podem de forma alguma ser esquecidos ou abafados. As pessoas que sofreram a violência jamais os esquecerão. É por isso que pedimos por justiça", finaliza.

 

Fonte: ORM

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