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Artigo: Mãe e bebê abraçados no fundo do mar
17/10/2019 23:49 em Notícias

"Mas acima de tudo, não conseguirão esquecer. Quem poderia esquecer uma imagem tão pungente? Não é humano esquecer, e de fato não esquecem os garotos e garotas que trabalham nos barcos das ONGs e não esquecem os garotos e garotas da Guarda Costeira Italiana. Mas, para eles, não são fotografias, são carne que pesa, olhos a serem fechados, pele escamada pelo diesel. São corpos, com sua desagradável fisicalidade. E a fisicalidade te contagia, te enodoa, se gruda em ti com seu cheiro, com a forma impressa nos dedos que agarraram braços, pernas, cabelos, na tentativa desesperada de salvar".

 

A reflexão é da escritora italiana Elena Stancanelli, em artigo publicado por La Stampa. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

Desta vez, temos que desistir da fotografia. A mãe e o recém-nascido abraçados, a enésima “pietà” desses anos de infinitas mortes pela água. A fotografia que nos abala, que nos envergonha, nos acorda por um momento, lembrando-nos de nossas responsabilidades. Pena, teria sido perfeita. Uma mãe e um recém-nascido, o que poderia ser menos perigoso? Difícil invocar o terrorismo diante de uma mãe e de um recém-nascido, o tráfico de drogas, os celulares e a tendência ao estupro. Toda a tralha propagandística é obrigada a se calar, quando a verdade do desespero aparece. Pura, simples, inocente. Mas essa fotografia não será vista, porque aquela mãe e aquele bebê estão no fundo do mar, na escuridão, a sessenta milhas de profundidade. Comidos pelos peixes, envolto nas algas, inchado, assustadores. Eles foram encontrados pelos mergulhadores da Guarda Costeira italiana, procurando os dezessete corpos ainda desaparecidos, após o naufrágio de 7 de outubro, que ocorreu a alguns quilômetros de Lampedusa.

 

Naquela noite, tendo chegado perto da costa, com o bote que fazia água e o motor sem gasolina, os homens e as mulheres desesperados enviaram um pedido de ajuda. Mas quando chegou o socorro, como acontece com frequência, o pânico deu uma rápida e trágica guinada nos eventos: o bote virou e aqueles homens e mulheres, e aquelas crianças, destruídas pelo cansaço, aterrorizadas, com coletes salva-vidas falsos incapazes de nadar, afundaram. Foram procurados durante uma semana, no meio do mar agitado.

 

Primeiro encontraram os destroços e depois os corpos. Alguns ainda estão desaparecidos, serão encontrados. Mas acima de tudo, não conseguirão esquecer. Quem poderia esquecer uma imagem tão pungente? Não é humano esquecer, e de fato não esquecem os garotos e garotas que trabalham nos barcos das ONGs e não esquecem os garotos e garotas da Guarda Costeira Italiana. Mas, para eles, não são fotografias, são carne que pesa, olhos a serem fechados, pele escamada pelo diesel. São corpos, com sua desagradável fisicalidade. E a fisicalidade te contagia, te enodoa, se gruda em ti com seu cheiro, com a forma impressa nos dedos que agarraram braços, pernas, cabelos, na tentativa desesperada de salvar.

 

Enquanto as fotografias, como explicava muito bem Susan Sontag naquele ensaio intitulado "Diante da dor dos outros", são ambíguas. O seu efeito é ambíguo. "A imagem como choque e a imagem como clichê são dois lados da mesma moeda", escreve Sontag. Precisamos fazer algo para impedir esse massacre, e para isso é necessário encontrar uma maneira, para que o horror resista dentro de nós tempo suficiente para tornar essas mortes insuportáveis, para afastá-las do cálculo eleitoral. Poderíamos parar de chamá-los de migrantes, por exemplo. Talvez se simplesmente disséssemos "pessoas", seria mais fácil entender que somos responsáveis por suas vidas. Citando novamente Sontag, "nunca se deveria dar um nós como garantidos quando se trata de olhar para a dor dos outros".

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