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O Brasil dividido entre o partido antivírus e o próvírus
10/04/2020 11:16 em Notícias

Por J.R. Guzzo

A epidemia oferecida ao mundo pelo coronavírus da China conseguiu produzir, no Brasil, um fenômeno talvez sem precedentes: pela primeira vez na história uma substância química passou a servir como linha de divisão entre a direita e a esquerda. É essa hidroxicloroquina, um clássico trava-língua do qual ninguém jamais tinha ouvido falar até hoje fora da comunidade envolvida com o universo da química, mas sobre a qual todo mundo passou a ter, subitamente, opiniões apaixonadas – do presidente da República ao porteiro do seu prédio.

A discussão é se essa droga, disponível através da indústria farmacêutica, serve ou não para curar a Covid-19.

Química é química, e política é política, mas no Brasil irracional em que estamos vivendo, as coisas não são assim. Se você é de direita, e a favor do presidente Jair Bolsonaro, você acha que a hidroxicloroquina é um santo remédio para curar a Covid-19. Se você é de esquerda, e contra o governo, acha que é um veneno – ou, no mínimo, uma substância suspeita, de efeitos desconhecidos e que não pode, de jeito nenhum, ser receitada para ninguém.

Naturalmente, como de costume, quanto menos o sujeito sabe sobre química, farmácia e medicina, mais certeza ele tem de que está com a razão. Não ajuda em nada, para se melhorar os níveis do bate boca, o fato de que os próprios médicos e pesquisadores estão amargamente divididos sobre os efeitos do medicamento.

Não é uma questão difícil de entender quando se leva em conta que, desde a chegada da epidemia, o Brasil se dividiu entre o partido antivírus e o partido pró-vírus.

O primeiro quer que a Covid-19 seja eliminado o mais cedo possível, que o confinamento seja encerrado e que o país volte a funcionar rapidamente.

O segundo quer que a epidemia apresente estatísticas cada vez piores, que a quarentena seja reforçada e que o país demore o máximo possível para voltar ao normal.

O Brasil antivírus, é claro, é o do governo – quanto mais cedo a praga acabar, melhor para ele.

O Brasil pró-vírus é o da oposição. Quanto mais o país demorar para recuperar a normalidade, tanto pior para o governo e o seu futuro político. O resto dessa história toda é bem conhecido.

A hidroxicloroquina está disponível e sendo aplicada, é claro, nos hospitais dos ricos e dos planos médicos “top de linha”; é tomada, também, pelos médicos que pegaram o vírus e podem controlar o seu próprio tratamento.

O raciocínio que está valendo, aí, é o seguinte: os conhecimentos já obtidos sobre a droga ainda não são completos, mas já são sucientes para aplicá-la, sem riscos, num vasto número de pacientes, e para o povão, o raciocínio é esse mesmo, só que ao contrário: os conhecimentos sobre a substância ainda não são completos e, portanto, ela não deve ser aplicada.

O jornalismo investigativo deu a si próprio a missão de investigar, em todos os seus detalhes, as possíveis contraindicações da hidroxicloroquina e, sobretudo, em demonstrar que não há certeza cientíca sobre os seus benefícios.

As “instituições” , como um todo, também se colocam contra – salvo quando seus próprios membros passam a precisar de tratamento. A oposição age da mesma forma.

É muito fácil, obviamente, exigir consenso absoluto sobre a eficácia, o alcance e a conveniência da aplicação da substância quando você próprio não precisa esperar, para tomá-la, pelos próximos vinte ou trinta anos – tempo que a ciência médica, em geral, demanda para ter certeza suficiente sobre medicamentos e terapias.

O duro, justamente, é a espera. Mas isso é coisa para pobre – e os pobres, como sempre, que se explodam.

J.R.Guzzo (foto acima) é jornalista. Começou sua carreira como repórter em 1961, na Última Hora de São Paulo, passou cinco anos depois para o Jornal da Tarde e foi um dos integrantes da equipe fundadora da revista Veja, em 1968. Foi correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita pioneira do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Foi diretor de redação de Veja durante quinze anos, a partir de 1976, período em que a circulação da revista passou de 175.000 exemplares semanais para mais de 900.000. Nos últimos anos trabalhou como colunista em Veja e Exame.

**Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião do site.

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